
continução...
A querela das duas Misérias termina deste modo por uma clara oposição das escolhas políticas. É necessário acrescentar que para além das expressões, para além dos conteúdos manifestos, existiam várias oposições que não fazem objeto de expressão.
Como em toda a polêmica, existia um conteúdo latente cuja análise seria inesgotável, da qual não pretendemos fazer mais do que uma análise suficiente. Duas dimensões seriam, parece-me, a sublinhar e que se completam:
A primeira diz respeito ao estranho silêncio de SISTEMA DAS CONTRADIÇÕES ECONÔMICAS OU FILOSOFIA DA MISÉRIA, de Pierre-Joseph Proudhon, editora Ícone, 2003, 440 p.
Marx sobre o ponto essencial que é a crítica proudhoniana do comunismo. É, com efeito, neste texto de 1846 que Proudhon faz, pela primeira vez, uma análise longa e detalhada da comunidade para demonstrar, segundo os seus termos, que:
“A comunidade é impossível...”, que ela conduzirá a instaurar um novo estatismo sob o poder de um só, que ela é, enfim, “a religião da miséria”.
Marx leu bem este capítulo, como testemunham as citações que faz, embora evite evocar a argumentação de Proudhon e de fazer a crítica, como se o debate se apoiasse sobre um ponto tão decisivo que seria preferível não abordá-lo.
Marx escolhe, deste modo, ignorar, ou finge ignorar, tudo o que o separa radicalmente de Proudhon, quer dizer, toda a crítica do comunismo e toda a orientação anarquista de Proudhon.
Marx, podemos dizer, substitui aqui a discussão por troças, despropósitos e diferentes formas de injúrias. Proudhon encontra-se qualificado de “poeta incompreendido”, de tonto, e, desde as primeiras linhas, de ignorante em filosofia e em economia.
É o sentido do exergo irônico pelo qual Marx se coloca como professor de filosofia e de economia. É o conteúdo do exergo datado de 15 de junho de 1847:
“O sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós, na nossa qualidade de alemão e de economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra esse duplo erro”.
Proudhon percebe bem esta estratégia polêmica de Marx quando nota à margem:
“Troçais sempre antecipadamente: começais por ter razão”.
A segunda dimensão que queria sublinhar faz aparecer uma oposição radical entre Proudhon e Marx. Este texto de 1847 inscreve-se numa estratégia de ruptura e numa concorrência pela conquista de autoridade no seio do movimento social.
Marx coloca-se como detentor de competências filosóficas e econômicas que lhe permitiriam julgar e condenar. Trata-se praticamente de excluir Proudhon do movimento social, de demonstrar que ele não é um representante válido deste movimento.
Daí o recurso a fórmulas que serão abundantemente repetidas nos conflitos ulteriores e que decretam simbolicamente a exclusão designando Proudhon como porta-voz da pequena burguesia.
Fórmula que toma todo o seu sentido numa estratégia de conquista de autoridade contra os seus concorrentes.
E, a este nível, a oposição é completa entre Proudhon e Marx, e o diálogo impossível. A discussão cessa porque Proudhon não se situa neste terreno. É capaz de polemizar vigorosamente (e mostrá-lo-á contra Pierre Leroux ou Louis Blanc, por exemplo), mas, para ele, a discussão é e deve ser prosseguida e permanente.
Não se trata de eliminar os adversários para conquistar posições de poder, não se trata de reconstituir uma autoridade, mas de continuar debates que fazem parte da vida política e do seu pluralismo.
E se Proudhon não respondeu à obra de Marx, é, seguramente por várias razões, mas, sem dúvida, também porque lhe repugnava entrar neste tipo de conflito:
recusava confundir o debate político com as estratégias de conquista de poder.
Conhecemos a seqüência dos acontecimentos:
Proudhon não terá mais a ocasião de reencontrar ou discutir os trabalhos de Marx. Este, ao contrário, voltará múltiplas vezes sobre as teses de Proudhon para continuar a criticá-las.
Notas:
1. Pierre Haubtmann, Proudhon, Marx et la pensée allemande,Grenoble, Presses Universitaires de Grenoble, 1981.
2. Proudhon, De la Création de l’Ordre dans l’Humanité,1843, Paris, Nouvelle Edition, M. Rivière, p. 286.
3. K. Marx, Misère de la philosophie, notas marginais de Proudhon, Paris, Costes, 1950, p. 135.4. Ibid., p. 82.5. Ibid., p. 216.6. Ibid., p. 144.7. Id..8. Ibid., p. 135.9. Ibid., p. 128.10. Ibid., p. 127.11. Ibid., p. 135.12. Ibid., p. 126.13. Ibid., p. 127.14. Id..15. Proudhon, Système des Contradictions, Paris, M.Rivière, t. I, p. 345.16. Ibid., t. II, p. 302.17. Misère de la philosophie, op. cit., p. 101.18. Ibid., p. 25.19. Ibid., p. 137.20. Ibid., p. 150.
O presente texto foi extraído da obra Proudhon Revisitado: Repensar o Federalismo, Universitária Editora, Lisboa, 2001, com a devida autorização do autor. A Editora Imaginário publicou na coleção Escritos Anarquistas, vol. 19O: Essencial Proudhon, do mesmo autor.
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