
As ondas Proudhon
Embora seja certo que ele recusaria tal distinção, a importância de Proudhon é de duas ordens.
Ela é em primeiro lugar histórica e política. De fato, é impossível compreender o que quer que seja sobre a natureza e significação dos movimentos revolucionários ocorridos a partir da segunda metade do século XIX sem conhecer a obra de Proudhon.
Uma obra que esteve em parte na origem desses movimentos, mas que é, sobretudo, expressão e fonte de inspiração para a riqueza, diversidade e originalidade de sua realidade e significação emancipadoras.
Durante mais de setenta e cinco anos (quatro gerações operárias), desde a fundação da 1ª Internacional, em Londres em 1865, até o fim da revolução espanhola em 1939, o conjunto de países em vias de industrialização foi atravessado por surpreendentes movimentos operários e revolucionários, mas freqüentemente ignorados, duplamente massacrados, tanto em sua realidade quanto em sua lembrança, pelas ulteriores configurações do comunismo marxista.
A influência de Proudhon passa por múltiplas ondas e histórias diferentes, que se recobrem e se reforçam mesmo quando são muito diversas. Temos por exemplo, os movimentos cooperativos — esse ramo duradouro, mas negligenciado do movimento operário internacional.
Ou ainda a 1ª Internacional (AIT), uma primeira vez, com as posições moderadas dos “proudhonianos” de estrita observância (os “mutualistas”), e depois, contra os primeiros, através da radicalidade revolucionária dos partidários de Bakunin, que conviveu regularmente com Proudhon (durante os anos 1840), e que o lera com paixão, antes de se apropriar dele e de retomá-lo de outra forma.
Outro exemplo é a Espanha.
Inicialmente o proudhonianismo aí se difunde não entre os operários, mas na pequena burguesia dos meios republicanos e federalistas, em especial com as traduções e os escritos de Pi y Margal, ministro da efêmera república de 1871, mas também inspirador mais ou menos direto dos levantes cantonalistas dos anos 1860.
Esse primeiro proudhonianismo encontra-se e é recoberto por uma segunda onda, desta vez estrita e massivamente operária, através do duplo acontecimento que foi o eco da Comuna de Paris e a ligação duradoura das principais forças operárias com o anarquismo de Bakunin.
Um outro exemplo, mais tardio, é o sindicalismo revolucionário que, a partir da França e depois um pouco em todas as partes do mundo, acaba representando o projeto de Proudhon em oposição, mas também em estreita afinidade, com o proudhonianismo extremo e insurrecional dos anarquistas, e com aquele aparentemente tão diferente dos múltiplos e proliferantes movimentos culturais e cooperativos.
Essa capacidade de Proudhon de inspirar realidades tão diferentes quanto os movimentos messiânicos dos operários agrícolas andaluzes, a rigorosa e complexa federação dos relojoeiros do Jura suíço, as ações itinerantes dos Industrial Workers in the World (IWW) americanos, ou os grupos anarquistas do East End judeu de Londres, serviu por um longo período para justificar o veredicto de incoerência e heterogeneidade que geralmente se atribui à sua obra, como também às revoltas e realizações de caráter libertário dos quais ela é a vertente teórica.
Mas é justamente aqui que uma releitura contemporânea de Proudhon e desses movimentos, pode tentar esclarecer sua originalidade e o rigor de sua lógica interna.
“A anarquia, essa estranha unidade que não se diz senão do múltiplo”. Através dessa fórmula, Gilles Deleuze e Félix Guattari descrevem com economia e precisão a originalidade do projeto libertário, e do modo pelo qual Proudhon o pensou, duplicando assim sua diversidade e suas contradições aparentes.
De fato, como Proudhon conseguiu ao mesmo tempo, para nos atermos ao mais conhecido, afirmar-se como reformista e como revolucionário, celebrar e denunciar o trabalho, opor-se ao romantismo insurrecional e tornar-se o apologista do guerreiro, reclamar-se da emancipação e dar provas de uma inverossímil misoginia, sustentar durante o conflito do Sonderbund suíço (1847) os cantões católicos e reacionários contra a maioria radical da Confederação, ou ainda adversário das greves e dos primeiros sindicatos transformar-se no primeiro inspirador do sindicalismo revolucionário?
Graças a trabalhos como os de Pierre Ansart (especialmente Naissance de l´anarchisme),[2] mas também, mais recentemente, o trabalho da jurista Sophie Chambost,[3] ou ainda o livro coletivo Lyon et l´esprit proudhonien,[4] percebe-se melhor a coerência de um pensamento e de um projeto fundados sobre a anarquia do real e que rompem com o conjunto das representações da modernidade.
Lembremos rapidamente os traços mais marcantes dessa coerência e dessa ruptura.
segue...
notas:
2 - Piere Ansart. Naissance de l’anarchisme. Paris , ed. PUF, 1970.
3 - Sophie Chambost. Proudhon et la norme. Pensée juridique d´un anarchiste. Rennes, ed. Presses universitaires de Rennes, 2004.
4 - Vários autores. Lyon et l´esprit proudhonien. Lyon , Atelier de création libertaires, 2003.
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Professor de Sociologia na universidade de Saint-Étienne, membro da livraria libertária La Gryffe de Lyon, autor de Petit lexique philosophique de l’anarchisme.De Proudhon a Deleuze. Paris, ed. Le Livre de Poche, 2001 e Trois essais de philosophie anarchiste, Islam, Histoire et Monadologie. Paris , ed. Léo Scheer, 2004.
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Tradução do francês por Martha Gambini.
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Revista verve, nº. 9: PUC/ São Paulo, págs. 23-29, 2006.
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